Poiesis Urbana

29.8.04

MEU SANGUE

Ela não foi buscar-me no colégio
chorei por toda a noite no portão
já bem perto das onze aparecia
estranha entre a tristeza e a escuridão

ela falava só dentro do ônibus
sua veia avermelhava o corredor
o grito a bofetada o descontrole
e o frio bem maior que o cobertor

meu pai o perfumista silencioso
o Alcântara o Dom Pedro, o Vera cruz
o azeite o bacalhau o vinho do Porto
e a filha louca de Madam’Brandão

de pai ausente e mãe sempre doente
a força de escrever me equilibrou
e a ti devo, poesia, estar vivendo
de empréstimo da dor que não passou

Lucila Nogueira

No Exílio de Si

Lucila Nogueira é uma poeta em busca de raízes

“Poesia para mim foi uma salvação.” Lucila Nogueira escreve desde os oito anos, para amenizar a solidão provocada pelas constantes mudanças. As outras crianças a viam com estranheza, não tinham tempo para se acostumar com ela. O pai de Lucila era um português, morador do Rio de Janeiro, e a mãe, recifense que não partia da cidade natal. A menina Lucila não passava mais de um ano no Recife nem no Rio de Janeiro. A falta de uma raiz sólida, contraposta à presença tanto da cultura nordestina quanto da portuguesa, é ponto central para se entender a vida e a obra da poeta Lucila.

O pai da escritora morre em 1975 e a certidão de óbito revela a Lucila, então com 25 anos, que seus bisavós são espanhóis. A admiração pela cultura ibérica se multiplica. “Minha poesia é de busca de raízes”, declara a escritora, que procura construir sua identidade com base em elementos das três culturas: nordestina, portuguesa e espanhola. Lucila dedica uma tetralogia poética a essa construção e ao autoconhecimento — Ainadomar (1996), Ilaiana (1997), Imilce (1999) e Amaya (2000) —, entretanto o tema perpassa todos os seus livros.

Lucila é professora do Departamento de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco, onde é conhecida pelo caráter expansivo e pela exuberância de suas roupas. Muito preto e vermelho, misturados com cores como verde e azul; brincos e colares maiores que o usual. “Às vezes ela se sente a própria espanhola”, brinca uma aluna. Também é confundida com mística, o que não é de todo infundado, uma vez que o transcendental, junto com o cotidiano e o memorial, é um dos pilares desde o primeiro livro, Almenara (1979).

Os títulos mais homenageados pelo público são Imilce, poemas em voz alta, dialogando com o teatro; Dama de Alicane (1999), com poesias de amor; e Refletores (2002), que, segundo a autora, é seu livro mais pop. O volume que será publicado agora em agosto se chamará Estocolmo, a autora concebeu os poemas numa viagem de visita à filha que mora próximo da capital da Suécia.

Lucila tem personalidade forte também na sala de aula; tenta fazer o aluno refletir, chegar ao conhecimento sem facilidades. “Ela tem um jeito que no início assusta, intimida, mas agora está ótima”, fala Carla, que há quatro meses estuda com a escritora. Virgínia Leal, colega de Lucila, é diretora do centro em que ambas ensinam e admiradora de sua obra desde o início dos anos 90. Com autoridade no assunto, esclarece: “Lucila tem um papel fundamental, quebra o estereotipo acadêmico do que é um professor, e suas aulas têm um lado artístico muito forte”.

A professora e poeta responde cautelosa sobre uma suposta preferência entre lecionar e escrever: “Eu sou basicamente escritora, mas, quando menina, também sonhava em ensinar.” Um dos raros momentos em que essas duas faces se confrontaram aconteceu no Prêmio Portugal Telecom, foi convidada, na edição deste ano, a concorrer como professora destaque e como escritora de poemas — mas tinha de escolher apenas uma categoria. Preferiu enviar o livro, Desespero Blue (2002), que agora está entre os finalistas do evento.



25.8.04

Da suicida

para os alunos do CFCH–UFPE

Tua paixão me apavora,
Certeza do nada
Trocada numa vida.

Teu olhar não consola,
O vazio, fio da espada,
Rasga a dor sem saída.

Teu corpo cai na aurora,
Outrora, flutuava,
Jaz então esquecida.

21.8.04


O escritor Paulo Gustavo lançou O Olhar da Coruja na web esta semana. Um blog onde serão reunidos poemas, contos, resenhas, crônicas, notícias da vida cultural pernambucada.


O Sol surge sobre a ponte Derrama amarelo no lilás do céu A noite ainda se despede do dia Uma leve brisa varre a atmosfera As águas do rio apenas circulam Indecisas, as marolas não sabem se vão ou se vêm, apenas carregam em sua superfície um tosco reflexo do que se passa acima O persistente pescador, em sua canoa, tenta provar que o progresso ainda não matou a natureza Mas os esgotos e as garrafas plásticas estão convencidos do contrário - Recife, tuas pontes foram feitas para serem cantadas, não canteiros Cochicha-me um solitário pássaro branco pousado por cima de um pneu enlamaçado