Poiesis Urbana

29.6.04

De menino a pai foi uma estrada que pintaram di-
versos.

O chão é enorme e o motorista tem pressa.

Consigo vai o desejo de rever o filho que foi
nos risos do filho seu e a certeza de que seu
amor é antigo como esse chão sob as rodas.

Não-pontual

As pontas do corpo,
Corpo contra corpo,
Tocam contrapontos
Nos rubros encontros.

Só há de estorvo
O que se faz morto
Todo o Tempo, sonso,
Pondo fim ao conto.

Cor e sentimento,
Enamorados,
Dançam languidez.

E as pontas, cimento,
E os nortes, torçados,
Despontam à tez.

VERDADE

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Carlos Drummond de Andrade

24.6.04

Colher poesia
É semear sentidos,
Enunciados lidos
No catar fantasia.

UM RESTO DE MÚSICA

A vida é dura: pedra, ferro, lâmina,
Ração diária de nervos
Que jamais voltarão a ser tranqüilos.
Mas há os filhos
E seus sorrisos e suas graças
E o resto que a máquina fotográfica
Limpa de qualquer impureza.
E há o beijo da mulher amada
E sua mão tão sábia
Abotoando o botão que falta.
E há os domingos
Pintados de azul pelos amigos
E há qualquer coisa de repente
Que não deixa o teto cair
Nem a fita se confundir
Na memória gasta
Pelos motores do mundo.

De súbito se descobre
Esta coisa simples e única:
Que lá no fundo de nossas almas
Sempre existe um resto de música.

CONVITE

O poeta recifense Paulo Gustavo, autor dos versos acima, convida os amantes da boa poesia para o lançamento de seu livro: O Poder da Noite. Ele será realizado no Clube Alemão, Recife, às 20h do dia 1o de julho.

Regime

Sobre a mesa jaz
O dicionário —
Aquário de nomes
Que vivos ou não
Povoam o Gênesis.
Junto a ele estão
Pão, papel e pena;
Algumas bolachas;
E o gordo poeta
Pescando delírios
Já que ultimamente
Só tem mastigado
Palavras! Verbetes...

20.6.04

Estrela da Manhã

Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã ?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e os troianos
Com o padre e o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois pecai comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma
ternura tão simples
que tu desfalecerás
Procurem por toda a parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

Manuel Bandeira

Novo Tempo

A ti dou meu mundo -
Uma gargalhada gostosa,
As flores e seus tons,
O sal que descobri nas lágrimas,
Meus dias de chuva.

Contigo reencontrar
Coisas que há muito perdi
E outras que nunca vivi
Na ânsia de me perder
Reviver "a jibóia digerindo o elefante"
Crescer, novamente e pela primeira vez.

Quero seis mão cativas
E três corações libertos.


para Davi, meu filho

16.6.04

ULISSES

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Embaixo, a vida, metade
De nada, morre.

Fernando Pessoa

No preto e no branco
Do escuro do quarto,
Dorme calmo o rosto
Belo. Salvo aqui
De luz e paixões.

É branco no preto
Do escuro do quarto.
O rosto respira
Mesmo ar que eu.
Inspiração dela,
Inspiração minha.

É preto no branco
Do escuro do quarto.
As feições são poucas.
Reverso do espelho.
Mais miro o que foi
E em mim permanece —
Qual vida de cego.

Em algumas cores
Do abajur acesso,
Me vem a saudade
De segundos antes
Quando a vi sorrir.
Acaricio o sono,
A pele e o amor.
Dourados.

Poesia dedicada a Rafinha, minha esposa.

15.6.04

Introdução

Poiesis, palavra que na sua origem grega significa criação, poesia, poema. Desculpe falar grego logo de cara, mas a sonoridade do termo é que me envolve. Por Deus, isto aqui não é um diário eletrônico — eu, como todo mundo, prefiro falar da vida alheia —, servirá antes como uma caderneta de rascunho. Poemas, pensamentos e eventuais prosas, minhas e de poetas cujas sombras me fazem abrigo, terão este espaço para se encontrarem com leitores.