Poiesis Urbana

1.4.05

Recife em rima e verso livre

“Amar, mulheres, várias / amar cidades, só uma — Recife / e assim mesmo com as suas pontes / e os seus rios que cantam.” Esses versos de Lêdo Ivo, alagoano de nascimento, servem de epígrafe a diversos livros que falam da cidade mauricéia. Suas belezas naturais e singularidades históricas fazem do Recife, e de seus bairros, cenário ideal para o trabalho dos poetas, nativos ou não, de diversas gerações — sejam romantistas, parnasianos ou modernistas. O Recife, aliás, no campo literário sempre foi famoso por seus líricos e tem dado ao País raros romancistas. Em 1952, Nertan de Alcântara já prenunciava no Diário de Pernambuco: “Esta cidade foi e sempre será uma cidade de poetas”.

O baiano Gregório de Matos, célebre satírico e moralista do século XVII, não poupou a capital pernambucana, onde veio a falecer em 1696: “O povo é pouco, e muito pouco urbano / (....) As damas cortesãs e mui rasgadas, / Olhas podridas, papas pestilências, / Sempre com purgações nunca purgadas”.

A histórica sina do Recife foi ter sido construído sobre as águas — de mangues, rios e pastos — o que ainda hoje é motivo de alagamentos em épocas de forte chuva. Já no século XVIII, o poeta Francisco Sales versa sobre o tema, falando de uma área recém-aterrada, onde atualmente está situado o bairro de Afogados: “Muito tempo não há, que o mar cobria / Este mesmo lugar / (....) Mal seco está das águas que vertia!” Francisco Sales também registrou a demolição do Arco e Capela do Bom Jesus, por ordem do progresso: “O martelo sacrílego esmigalha / O tempo do Senhor Imaculado / No céu retumba o eco reprovado”.

O mais ilustre dos escritores do Romantismo brasileiro, o indigenista Gonçalves Dias, era maranhense e nunca morou no Recife, mas se encantou com sua geografia: “Salve, risonha terra! São teus montes / Arrelvados, inúmeros teus vales / Cujas veias são rios!”. De fato, os rios sempre tiveram presença marcante tanto no cotidiano como no imaginário da Veneza brasileira. O Beberibe, por exemplo, foi retratado nos versos livres de Múcio Leão: “Evoco a luz branca e azul das tuas manhãs, / Quando uma névoa se vai lentamente desfazendo nos teus vales”.

O Capibaribe, entretanto, é ícone dos mais citados nas estrofes de poetas e poetisas, o limoeirense Austro Costa o imortalizou da seguinte forma no poema Capibaribe, meu rio...: “Meu velho Capibaribe, / meu irmão de Sonho e Amor / (....) Capibaribe, meu rio, que vida levamos nós! / Tu corres; eu rodopio... / E há quarenta anos a fio: Sempre juntos — e tão sós...” As pontes também são símbolos importantes da alma recifense, a historiadora Bartyra Soares as flagra num quadro contemporâneo de estresse e incertezas: “Vejo os homens que pelas minhas margens / e pontes aflitos passam. Carregam embrulhos. / Os dentes cerrados o tempo no tempo / e no pulso. Também correm: não sabem aonde irão”. Em fins do século XVIII, no subúrbio de Ponte de Uchoa, a realidade social era outra, como versa João Batista de Castro: “Ao bairro chic, onde não há distúrbios, / onde nunca da ronda o apito soa! / Viva o melhor de todos os subúrbios! / Viva a Ponte de Uchoa!”.

As letras de Chico Sciense sobre a péssima distribuição de renda na capital — “A cidade não pára, a cidade só cresce / o de cima sobe e o de baixo desce” — no início dos anos 90 não foram inovadores no tema; o problema vem de longe, Adeth Leite, em meados do século passado, já escrevia: “Recife do presente, dos arranha-céus imponentes / da Avenida Guararapes / (....) Recife miserável da rua da Guia, / onde o ar tem cheiro ativo de iodofórmio”.

A vivacidade do carnaval do Recife não poderia ser ignorado pelos poetas, são várias as inspirações no período momesco. Entre elas, se destaca Carnaval do Recife, do modernista Acenso Ferreira, conhecido por seu estilo absolutamente próprio e oralizado: “Carnavá, meu carnavá, / tua alegria me consome / (....) chegô o tempo das muié largá os home! / chegô o tempo das muié largá os home! / Chegou lá nada... / Chegou foi o tempo d’elas pegarem os homens, / porque chegou o carnaval do Recife, / o carnaval mulato do Recife, / o carnaval melhor do mundo”. A letra de Evocação No 1, do maestro Nelson Ferreira, rememora o carnaval dos “tempos ideais” e ainda hoje deixa eufórica a multidão que, acompanhada de uma banda de frevo, canta: “Na alta madrugada, / o coro entoava / do Bloco a marcha-regresso / (....) E o Recife adormecia, / ficava a sonhar / ao som da triste melodia”.

“Rua da União... / Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância / Rua do Sol / (Tenho medo que hoje se chame do dr. Fulano de Tal)”. O saudosimo de Manuel Bandeira concentra nesta estrofe o sentimento de fascínio que alguns recifenses tem para com suas ruas. No Pequeno guia da cidade do Recife, Carlos Moreira, toca nesse tema que vários poetas abordaram: “Outras ruas (com os seus nomes) / Quase que poemas são: / Sol, Soledade, Saudade, / Ninfas, Rosário, Conceição, / Real da Torre, Amizades / (....) Há ruas no Recife que tristes e silenciosas, / Enchem o visitante de tédio / Outras, no entanto, parecem, / Pela face buliçosa, ruas do Oriente Médio”.

As cidades fazem os poetas, que as agradecem em versos, expressando o que entendem e sentem desse emaranhado de gente, ruas, bairros e rios. Sendo o Recife uma escola aos poetas, eles ainda têm muito o que oferecer na construção de vários retratos literários.