Poiesis Urbana

19.3.06

Frida Kahlo - Semiologia da Dor

"Me retrato a mí misma porque paso mucho tiempo sola y porque yo soy el motivo que mejor conozco."
Frida
Assim como a morte, a dor permanece em eterna vigília. Dois totens fincados em cada rua, à frente de cada casa, anunciam a fragilidade humana, tombando as pretensões de riqueza absoluta, força, imparcialidade, entre tantas outras. A dor expõe, muitas vezes à revelia, que as pessoas necessitam de apoio para seguir vivendo.
O animal também sente dor, mas apenas o homem pode extrair significados desta experiência. A dor crônica, por exemplo, leva alguns pacientes à depressão, o que torna difícil atividades cotidianas como levantar da cama e se alimentar. Inconformados, muitos pacientes buscam na própria história de vida o motivo que os teriam conduzido ao estado atual. A reação à dor pode se dar de maneira inversa — o artista que explora a angústia artisticamente com auxílio da tela, tintas e pincel. Nessa perspectiva, atuou a artista plástica mexicana Magdalena Carmen Frida Kahlo (1907–1954).
Aos 15 anos, a jovem moradora Coyoacán, Distrito Federal da cidade do México sofreu um sério acidente quando utilizava o bonde, transporte público da época. As seqüelas perduraram até a precoce morte ao 47 anos, vítima de câncer. Frida teve fraturas múltiplas na coluna e na bacia, precisando permanecer sobre a cama por meses a fio. Exatamente nesse período crítico, em que Frida restava isolada dos amigos na decisiva fase da adolescência, floresceram os primeiros contatos com a pintura.
Frida por Kahlo
Os quadros de Frida Kahlo registram uma dominante inusitada, talvez por isso não tenham encontrado recepção acolhedora em um momento inicial. O traço mais marcante da artista são os auto-retratos, que a acompanham durante toda a trajetória artística. Frida pintou o próprio rosto em centenas de obras. O horizonte de expectativa do público e da crítica não abarcava tamanha mistura entre vida e arte, rompendo com o modelo clássico no qual o artista parece receber inspiração de uma instância superior, enigmática.
Devido ao tratamento, Kahlo esteve na sala de cirurgia por 32 vezes. Os médicos utilizaram muitas técnicas dolorosas parar contornar as fraturas múltiplas, bem como o ferimento ocasionado por um ferro que perfurou o ventre da pintora de lado a lado. Ela experimentava, além da dor, o desconforto com as cicatrizes, com os aparelhos médicos.
Frida, enclausurada no quarto, em clínicas médicas e desconfortável dentro do próprio corpo, pintou aquilo que via, a dor latente. Retratou a dificuldade de ser humano em quadros paradigmáticos, como El Pequeño Ciervo (1946).
Trilhas
A obra de Frida Kalho, do meu ponto de vista, classifica-se em três eixos:
1) Os auto-retratos "convencionais", em que Frida aparece nos ambientes físicos identificáveis — quarto, casa, rua, etc. De forte viés nacionalista, ela vestia trajes típicos para estabelecer rastro com o povo e a cultura mexicana. Em vários retratos, Frida aparece ladeada de animais da região, papagaios, macacos, entre outros.
É importante sublinhar que a artista viveu no efervescente ambiente cultural sul-americano das décadas de 20, 30 e 40, partilhando dos ideais comunistas e lutando por eles. Frida marca presença em diversas manifestações a favor dos direitos de operários e indígenas.
2) Naturezas mortas e retratos de outras pessoas, categoria que perfaz um número reduzido
de quadros.
3) Auto-retratos no qual reinam o ambiente metafórico e geralmente hostil. Frida opera a substituição de ícones do real por símbolos subjetivos, mas com grande poder de exprimir os sentimentos. Sobre este último eixo principalmente, o presente trabalho se debruça para esmiuçar a relação entre a dor e a arte.
Metáforas
Podemos traçar uma antítese entre a metáfora no trabalho de Frida e a metáfora publicitária. As peças de propaganda utilizam bastante essa figura de linguagem substituindo o produto em si por imagens associadas à liberdade, limpeza, potência ou qualquer qualidade que se deseje imprimir ao uso do produto. A metáfora publicitária busca em última instância a identificação do público através do prazer, por isso, a interpretação não costuma exigir esforço.
Os quadros de Frida, por outro lado, demandam uma interpretação mais acurada e provocam o público a refletir sobre o pessimismo, a existência humana e a dor, espécie de anti-prazer. Entretanto, as substituições de signos estão presentes. No Henry Ford Hospital o La Cama Volando (1932), o espectador se questiona por que um feto no local reservado ao sangue.
Fotografia
Para fruir de maneira mais abrangentes as telas de Frida Kahlo, faz-se necessário conhecer melhor a história dela. Sobre Henry Ford Hospital, vale salientar que a artista não pôde ter filhos após o acidente de trânsito. O ferro do bonde que lhe atravessou o ventre também roubou a fertilidade ao provocar ferimentos no útero. Frida conseguia engravidar, no entanto o ferimento impedia que o feto se desenvolvesse — os diversos abortos pelos quais passou eram inevitáveis.
A mãe de Frida, Matilde Calderón, tradicional matriarca católica, mantinha relação conturbada com a filha, detentora de posições e ideologias vanguardistas para a época. Frida se divertia chocando a mãe e as tias ao vestir-se de homem.
O pai da pintora, fotógrafo judeu e alemão Gillermo Kahlo, marca a trajetória de Frida, cuja obra dialoga bastante com o gênero de fotografia praticada no início do século 20. Os personagens de Kahlo aparecem na maioria das vezes em posição frontal, exatamente como os membros das famílias retratados pelo patriarca.
Devido ao diálogo com a fotografia, existem muitos registros fotográficos de Frida, que pousava para fotos quase com a mesma freqüência que pintava os auto-retratos. Com o pai, Frida aprendeu a fotografar, revelar e colorir, o que nitidamente assentou diretrizes de sua arte.
Destaque para a Composição
Mesmo com a ousadia latente, os quadros da artista mexicana não se destacam por maiores rompimentos de padrão sob o enfoque dos signos plásticos — cores, formas, composição e textura. A perspectiva não apresenta grandes novidades, a exemplo dos cubistas que esboçam o quadro em diversos ângulos apresentando a fluidez do tempo. Frida também não concentra as energias em um fator plástico específico. A maestria de Kahlo reside no trabalho sobre a composição para ressaltar os significados.
Como aponta JOLY: "A composição, ou geografia interior da mensagem visual, é um dos utensílios plásticos fundamentais. Tem um papel essencial na hierarquização da visão e, portanto, na orientação da leitura da imagem (....), a construção é essencial — respeita ou rejeita um certo número de convenções elaboradas ao longo das épocas e varia de acordo com os períodos e estilos".
Frida joga principalmente com imagens, ícones impregnados do momento histórico, de ideologia e também do mundo interior, com o qual somos convidados a interagir e desvendar a dor enquanto sentimento individual e coletivo.
O trabalho pictórico geralmente facilita a leitura "natural" devido à rapidez com que os olhos percorrem a tela e reconhecem os signos. Em Frida, o espectador reconhece em curto espaço de tempo cada elemento do quadro, mas precisa de cuidado para interpretar determinados elementos e sua disposição no quadro.
Rivera
Ao se estudar a vida e obra de Frida, o artista plástico Diego Rivera (1886-1957) se impõe como tema devido à longa e movimentada relação amorosa que ambos mantiveram e à repercussão desse encontro na sensibilidade de Kahlo. Diego é o mais conhecido expoente da geração de pintores muralistas mexicanos, que utilizavam paredes das universidades, igrejas, empresas, entre outras entidades, para compor painéis de forte conotação política. Diego também manteve estreitas ligações com o Partido Comunista.
Antes de Frida possuir qualquer reconhecimento por parte da crítica ou do público, Diego Rivera já figurava entre os artistas de maior renome. A fama e o estilo de vida boêmio atraia as mulheres. Ele travou relações com dezenas de damas, mas sempre afirmava se tratar apenas de sexo, o que não considerava traição à Frida.
Com o comportamento compulsivo e a queda pelo álcool, Diego instaura em Frida a dor amorosa, que se apresenta de maneira tão intensa quanto a dor física. "Sofri dois grandes acidentes em minha vida, um foi o bonde, o outro Diego", deixou registrado a artista plástica em seu diário.
Frida Kahlo também colecionou amantes — homens e mulheres. Entre os casos mais famosos, estão a pintora Georgia O Keefe e o revolucionário Lev Trotski, que se refugiou alguns dia na casa de Frida enquanto era perseguido por assassinos enviados por Stálin. Os romances extra-conjugais não aplacaram a angústia com relação à Diego, bem retratada no quadro abaixo Diego en mi pensamiento (1943).
Surrealismo e Literatura
Nos quadros de Frida em que a realidade exterior e interior se confundem, estudiosos da arte encontram traços do Surrealismo. A corrente surgida nas duas primeiras décadas do século XX teve influência dos estudos psicanalíticos de Freud e colocava em cheque a cultura européia e a condição humana frente a um mundo cada vez mais complexo.
Entre os grandes expoentes dessa abordagem, estão os artistas plásticos Salvador Dali e Joan Miró.
Considerado "pai" da corrente por assinar o Manifesto Surrealista, o próprio André Breton adotou Frida como colega. Entretanto, a artista rejeitava o rótulo. Segundo ela, nunca pintou sonhos, mas a própria vida. "Eu pinto minha realidade", escreveu. Frida, aliás, flertou com a literatura. Amante de livros, deixou a vida registrada no Diário de Frida Kahlo - um auto-retrato íntimo.
Tanto nos escritos quanto nos próprios quadros, Frida se antecipa à publicidade na iconização das palavras. No diário, imagens e letras se misturam, ganham movimento. Por outro lado, na tela Diego y yo (1949), a assinatura e a data não são meros adendos. Reforçam a imagem de sofrimento através da cor vermelha que parece úmida, tal qual sangue - que se contrapõe ao transparente das lágrimas de Frida.
Atitude!
Não por acaso estilistas de diversas partes do mundo buscaram inspiração na figura de Kahlo, montando desfiles em sua homenagem ou tomando de empréstimos símbolos da pintora para agregar valor às peças. Para Frida, as roupas que usava tinham status de forma de arte. Os vestidos não são acessórios, apresentam a visão de mundo, valorizam o local, as cores, a tradição.
A moda dialoga com essa atitude de Kahlo. Outra característica que a pintora antecipa das passarelas é a ambigüidade entre masculino e feminino, as fronteiras ficam menos delineadas após a passagem de Frida. Ela ousou vestir calças, namorar homens e mulheres, não sentia remorso por isso e, ao mesmo tempo, dialogou com o antigo.
Frida mantinha uma coleção de objetos da arte popular. Em determinados momentos, essas peças saiam do armário para ganhar as telas da artista.
Rasgos de Frida
La Columna Rota, de 1944, guardas os traços marcantes da artista plástica mexicana. Nele podemos identificar a dor lacerante, intestinal, da coluna que se parte e a angústia de ter a pele coberta por pregos. A própria coluna não consegue mais ser humana, confunde-se com o ferro que atravessou o útero durante o acidente no bonde, que tanto atormentou a pintora.
As lágrimas nos olhos de Frida deixam evidente que a dor física tem repercussões mais profundas. Em pleno árido deserto mexicano, ninguém para ajudá-la, nenhuma mão estendida. O rosto demonstra, ao mesmo tempo, coragem e resignação. A nudez sugere a fragilidade, marca que pouco poderia ser feito contra a situação dada.
Antítese das fotos do pai, a tela retrata o interior, tal qual os aparelhos de raio x, aos quais Frida precisou submeter-se dezenas de vezes. O futuro não parece promissor. A coluna está quebrada e, em breve, toda a estrutura deve ruir. As fitas brancas envolvem o corpo sem piedade, lembrando os aparelhos médicos que a pintora detestava vestir. Entretanto, sem elas Frida se desintegraria.
Bibliografia
BUORO, Anamelia. Olhos que pintam - a leitura da imagem e o ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.
JOLY, Martine. Introdução a análise da imagem. Edições 70.
KAHLO, Frida. Diário de Frida Kahlo - um auto-retrato íntimo. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1995.
TRIGO, Luciano. Cores e dores da vida. Continente Multicultural, n. 26, fev./2003.
Frida. Dirigido por Julie Taylor e estrelado por Salma Hayek, 2002.
ZOE ALAMEDA, Irene. Frida Kahlo: la frente y el perfil. Revista Arte y Parte (http://www.arteyparte.com/actualidad/57.pdf)


Sites consultados
http://www.thecityreview.com/frida.html
http://www.fbuch.com/fridaby.htm
http://www.fridakahlo.it/index.html
http://www.publispain.com/fridakahlo/biografia.htm
http://www.laberintos.com.mx/frida/
http://members.aol.com/fridanet/kahlo.htm
http://www.diegorivera.com/index.php
http://www.elmundo.es/fotografia/2004/07/fridakahlo/index.html
http://es.wikipedia.org/wiki/Frida_Kahlo
http://www.historiadaarte.com.br/surrealismo.html

25.11.05

Como as enchentes no ancestral Rio Nilo. Roi Caamaño Santiso fugiu da trilha estabelecida e transbordou de si mesmo. Inundou em nós a amizade, a alegria de viver, o sorriso tímido e sincero, a força do amor verdadeiro. Quando a água retorna ao leito, o terreno encharcado se torna fértil. Por toda a vida, colheremos os frutos desta existência.

Verdadeira tormenta. A morte arrebatou o que parecia firme. Deixou os marinheiros com mastro partido em pleno vendaval de uma noite sem lua. A água molhou nossas mãos, nossas faces, inundou por dentro. Jorrava nos olhos dos pais e irmãos — da família que também era dele.

Como uma onda vinda de além-mar. Roi trouxe a verdade de uma Galícia que apenas imaginamos e o concreto carinho pelo próximo. A água cresceu, espalhou-se entre nós e voltou para o mar de infinito azul, levando um pedaço de nós e deixando muito de si.

De Antônio Patrício, Ruth, Patrício Filho, Daniele, Rafaela, Dimitri, Lúcia e todos da família de Ana Luísa Pimentel Borba

27.7.05

à minha esposa
...
Amor. Como explicar este sentimento controverso? Como resumir o montante de memórias, sonhos, desejos, sensações vividas por dois? O amor é algo que foge às raias de uma definição reta, cientifica, devido à infinitude de possibilidades que representa. Só pode ser viso uno — percebido concreto — no casal de namorados; no homem e na mulher que renunciam o tempo-relógio para degustar o tempo-pulsação.

Quando o perfume invade minhas tardes, a boca arrasta minha pele, a pele desliza entre os dedos. Quando o castanho escuro dos cabelos clareiam a vista, afagam o rosto, avivam nossa história. Quando o corpo desperta no meu a vontade de mergulhar na forma das coxas, dos seios. De entender a parte e o todo.

Com base na experiência que reservei a uma única mulher, ser poesia, construo a rede de significados para entender o amor. Palavra que, antes de conhecê-la, era reservatório de vazio e percepções alheias.

11.7.05

Digitar ou escrever?

por Bruno Parodi do No mínimo

Não foi preciso assistir a nenhum programa do Discovery Channel para constatar que se eu estivesse fora do mundo por alguns anos e caísse de pára-quedas, agora, no meio da internet, estaria frito para entender o que os outros querem dizer. Não me preocupo com os programas usados, e sim com esta bendita língua nova. O que houve por aqui enquanto estive fora? Estica, puxa, troca, omite, inverte e eis que temos o “internetês”, um dialeto novo, dinâmico e em constante mutação. Abreviações, corruptelas, neologismos e erros crassos estão disponíveis em diversos pontos de congestão ao longo do percurso.

Mas parece que aqui, na pomposa grande rede, é como aí fora, onde tudo é uma questão de “quem”, “quando” e “como”. De acordo com essas variáveis, uma pessoa vai estabelecer um tipo de linguagem para se expressar.

Até que tínhamos um padrão na internet. Na comunicação assíncrona (informações trocadas não acontecem ao mesmo tempo) havia formalidade, capricho com o escrever. Parava-se, refletia-se sobre o que seria enviado. Quando o papo era síncrono (em tempo real) sempre houve pressa, e acabava-se escrevendo como se fala, usando abreviações e outros atalhos. Em suma, a linguagem assíncrona sempre foi mais completa, correta, e na síncrona nunca foi novidade encontrar descuido. Mas esse padrão tem ido para o espaço ultimamente, e a pressa homogeneizou abreviações e errinhos pelas bandas do assíncrono.

As ferramentas de comunicação estão aí para quem quiser usá-las, e cada um aproveita da forma que bem entender. É como um aparelho telefônico, cidadãos de todos os gêneros podem usá-lo, tanto gente fina quanto gente tosca, gente de todos os quilates. Tem de tudo. E, como o telefone, a internet não pode ser responsabilizada como meio; ela ainda não fala pelo usuário.

Nesse bumba-meu-boi o jovem aparece com freqüência na fila de reconhecimento de suspeitos por alguns crimes contra a língua. No afã de diferenciar-se dos mais velhos, ele não só usa gírias próprias como também apela para a utilização de formas peculiares da escrita, substituindo letras, como o “s” pelo “x” ou “o” pelo “u”, entre outros, além de alternar letras em caixa alta e baixa na mesma palavra. Assim, o que para uns seria “escrever” passa a ser “iXcReVeR” para alguns deles. Faz lembrar o memorável “Xou da Xuxa”, da TV.

O Dossiê MTV 3, pesquisa com indivíduos de 15 a 30 anos, endossa parte do comportamento desse jovem. Os resultados apontam um público com uma capacidade crescente de usar o canal de conversação adequado para cada situação. A internet permite que o jovem fale sem querer conversar e converse sem precisar falar. Opções de vias não faltam. “A tecnologia abriu espaços e comunicar-se ficou mais fácil, mais seguro, mais rápido. E, com isso, a comunicação ganhou flexibilidade e freqüência”, revela. Por outro lado, os próprios entrevistados definem o comodismo como a terceira principal característica da geração, atrás apenas da vaidade e do consumismo.

E como tudo é uma questão de ótica, o Telecine, canal a cabo da Globosat, não perdeu a chance e há alguns meses transmite a Cyber Movie, uma sessão de filmes voltada para o público online. A novidade fica por conta do canto inferior da tela. Ao invés das legendas ipsis literis, o telespectador as lê como se tivessem passado por uma sala de bate-papo. Até o visual do fundo delas é diferenciado, ambientando uma janela de um software qualquer. Resultado: uma transcrição com palavras abreviadas e, muitas vezes, descaracterizadas. Para facilitar a vida dos menos familiarizados, sua página oferece um dicionário no melhor estilo “antes e depois”. Exemplo: “novidades” vira “9dades”.

João Mesquita, diretor geral da Rede Telecine, garante que, apesar de polêmica, a idéia vem gerando retorno, aumentando em 50% a audiência do horário em relação aos 6 meses anteriores ao projeto. E sobre a má influência que as legendas trariam aos telespectadores, João compara: “O Cyber Movie atinge cerca de 20 a 40 mil pessoas. No Brasil há cerca de 7 milhões de pessoas que usam regularmente este tipo de linguagem nos seus e-mails ou em chats. Não será o Telecine que vai influir na qualidade geral do português escrito no país. Quando uma personagem da novela da Globo fala errado, e é vista por mais de 30 milhões de pessoas, terá impacto?” O bóia-fria Sassá Mutema, interpretado por Lima Duarte em “O salvador da pátria” (1989), que o diga.

Do outro lado dessa pororoca, é possível encontrar iniciativas como a de Paulo Couto, diretor geral do Fórum PCs, criador da campanha “Eu sei escrever”, cujo conteúdo definitivo será lançado em poucos dias. “O projeto é um alerta na forma de um modelo de colaboração, para que sejam introduzidos pelos responsáveis pelas áreas de discussão na internet brasileira e pela mídia em geral ferramentas de correção e “tradução” para algo legível”, conta Paulo. Os filtros de palavras proibidas, normalmente configurados apenas para impedir o uso de termos impróprios, passarão a substituir automaticamente as abreviaturas mais comuns por verbetes correspondentes. Além da ferramenta, o projeto prevê a distribuição de uma relação de palavras traduzíveis.

Teorias indicam até a disposição dos caracteres pelo teclado, baseadas nas letras mais utilizadas da língua inglesa, como um fator prejudicial à digitação da língua portuguesa. Assim, determinadas configurações de teclado não favorecem a rápida utilização de acentos e do til. Neste caso “eh” acaba sendo visto no lugar de “é”, bem como “naum” ao invés de “não”. Não justifica, mas talvez explique em parte.

Como alento, ou não, foi constatada que essa balbúrdia comunicativa atinge o mundo todo, não sendo uma realidade exclusivamente nacional. Mas o brasileiro, claro, diferenciou-se, e apresenta particularidades mórbidas, como comenta Paulo: “Participo regularmente de sites internacionais e, mesmo que existam algumas gírias mais localizadas, é perfeitamente possível compreender o inglês escrito neles. É simplesmente ridículo que eu mesmo não consiga ler algo escrito em sites brasileiros, na minha própria língua”.

Não seria justo atribuir a origem de tanto caos, mudança e pancadaria a uma única razão. O jeito do jovem, a infelicidade do mal-educado, a melancolia do ignorante, a esculhambação da pressa, a palidez dos maus exemplos, a escassez de controle, entre tantos outros aspectos, podem ser considerados como desculpas. Por outro lado, ruim na internet, pior fora dela. Gírias enfadonhas e erros sofríveis são encontrados na escrita e na fala, seja na rua, no rádio ou na TV, e não poupam ninguém.

Fala-se tanto na tal “língua viva” e dela ninguém duvida ou discorda. Como dito no artigo anterior, existe uma coerência de tudo isso com o mundo desconectado. Tudo que começa lá acaba batendo aqui; é reflexo – talvez com mais permissividade e falta de supervisão. Se o produto de anos de uso do papel e do lápis estivesse digitalizado, catalogado com histórico e com mecanismo de busca, se fosse publicado na rede ou se pudesse ser facilmente anexado a mensagens de e-mails, talvez agora não estivéssemos tão impressionados. A novidade não é de hoje. Mas, já que isso não é possível, voltemos à realidade, e vamos digitando ao invés de escrever.

7.7.05



http://euseiescrever.blogspot.com/

24.6.05

Tríade do sabor eterno

Lua. Sobre mim o desejo, a consagração.
Crua. Sem tempo, sem prumo, sem rota, sem mundo.
Nua. Corpo que o dia usurpa. Negros belos cílios.
— Toda tua. Beija-flor azul escuridão.
Paixão. Cegueira dengosa que não partilho.

Sol. Sorrisos à mesa, garfos e facas. Puxo
Conversa. Cachos soltos rendem a visão.
Jatobá floresce mil anos. Nosso filho
É vida, movimento, carinho. É tudo.
Deuses invejam: glória, família e ação.

Olhos fechados. Sua beleza, meu suspiro.
O dia chama lá fora — à luta, ao luto.
Sobre a cama, entre as colchas, meu coração.
Prazer adiado para melhor curti-lo.
Louca, a boca calada me chama. Eu fujo.

23.6.05

E se pessoas fossem anjos, anjos sem asas, anjos sem Deus e sem pecados. E se, privados do vôo de Ícaro, buscassem eternamente, de todas as formas, essa liberdade, esse desprendimento dos solos e dos sólidos, dos meios e dos fins. E se a única maneira de aplacar essa angústia fosse, de bom grado, vendar os olhos, amarrar as mãos às costas e trancafiar-se em um calabouço, em outro anjo. O amor.