Poiesis Urbana

30.11.04

Olhar de Criança

Trabalhar em hospital é lidar com esquisitices de toda ordem, em hospital público então... Era o que eu ia pensando enquanto me ciceroneavam pelos pavilhões do Oswaldo Cruz no meu primeiro dia de estágio por lá. Tentava disfarçar com uma naturalidade amarela a pena, misturada à angústia, ao ser apresentado a ala das crianças cancerígenas e das doenças infectocontagiosas.

Na área conhecida como Alameda — onde doentes passeiam e acontecem eventos, como feirinhas, festas, etc. —, descansava um pouco daquela densa apresentação. Nesse instante, uma menininha nos seus 7 ou 8 anos cruzou por mim. Tinha longos cabelos cacheados e um dos olhos cego, fato que chamara bastante a minha atenção quando a vi pouco antes. Ela me olhou um segundo, tempo suficiente para tropeçar na calçada e cair de braços abertos.

A cena roubou meus movimentos e pude apenas assistir ao senhor prestativo que correu em direção da garota para auxiliá-la. Isso me ensinou que a angústia, misturada à pena, não ajuda muito na hora em que se precisa. Ambos os sentimentos têm raízes na minha educação de colégio religioso que separa os alunos promissores dos “especiais” — com alguma dificuldade física ou mental — que têm sua pedagogia a parte; também na minha cultura ocidental, que está sempre buscando o ser humano normal (melhor dizendo, ideal) para ditar parâmetros aos demais.

Encontrei a menina recentemente no Grupo de Ajuda à Criança com Câncer, onde os meninos se divertem e aprendem, com música, computação, artes. Ela pintava concentrada junto de uma amiguinha, só levantava a cabeça para pedir tubos de tinta e sorrir ao fotógrafo que estava comigo. Descobri então que a dor que eu vira no seu olhar estava muito mais nos meus olhos.